Precedente do Tik Tok é um trunfo aos EUA (por João Pedro Pereira)


Donald Trump anunciou que tem “um grupo de pessoas muito ricas” interessado em comprar o Tik Tok nos EUA. Daqui a duas semanas saberemos mais, prometeu.

A acontecer, será o culminar de um processo de venda forçada, decidido no tempo do seu antecessor sob pretextos válidos de segurança nacional e de receios de espionagem e interferência por parte da China.

Desde que Edward Snowden revelou, em 2013, a maior operação conhecida de vigilância de cidadãos em democracias (eram sobretudo os EUA de Barack Obama, mas também o Reino Unido e outros países europeus) que sabemos que os dados recolhidos pelas grandes tecnológicas não estão a salvo das agências estatais de informação e espionagem. Se o caso NSA aconteceu em Estados de direito democráticos, com freios e contrapesos e uma imprensa livre, muito mais pode acontecer com uma empresa sujeita à jurisdição de Pequim, como é o caso da ByteDance, dona do TikTok. Além disso, em regimes repressivos, será mais difícil surgirem “Snowdens” dispostos a fazer denúncias.

Este é um negócio difícil que tem vindo a ser sucessivamente adiado. O primeiro prazo era 19 de janeiro, o último dia de Joe Biden na presidência. Caso não houvesse uma venda, o Tik Tok teria de cessar operações. Mas essa seria uma medida impopular: a rede social chinesa é usada por cerca de metade da população dos EUA.

Desde então, Trump redefiniu o prazo três vezes. O mais recente é 17 de Setembro. Há um espinho: para poder vender, a ByteDance precisa da autorização de Pequim. Um dos pontos contenciosos é a exportação do algoritmo chinês que decide o que cada utilizador vê. Como outras coisas no mundo transacional do Presidente americano, esta questão está embrulhada nas negociações tarifárias.

Há algumas hipóteses em cima da mesa sobre quem são as “pessoas muito ricas”.

Em abril, foi noticiado que a Amazon fez uma proposta. Percebe-se a lógica de conjugar uma enorme loja online com uma plataforma capaz de influenciar o consumo de milhões de utilizadores, particularmente os mais jovens. A Microsoft manifestou interesse. A Oracle, responsável pelo armazenamento dos dados dos utilizadores do Tik Tok nos EUA, também poderá estar na corrida, em parceria com a influente firma de investimento Andreessen Horowitz e com outras que já têm hoje parte do capital da ByteDance.

Quem quer que seja o comprador, a venda do Tik Tok será um cenário inédito, que dará aos EUA mais um trunfo para manterem a hegemonia nas tecnologias digitais.

Não se trata apenas de uma democracia ameaçar banir uma rede social. Trata-se de os EUA terem argumentos e o precedente para tolher o aparecimento de qualquer plataforma online de ambição global que não seja americana. O argumentário da segurança nacional não serve apenas para redes sociais: pode facilmente estender-se às novas plataformas de inteligência artificial. Também não serve apenas para empresas com raízes chinesas.

Noutros tempos, seria impensável o Congresso ou o Governo dos EUA legislarem para banir uma plataforma europeia alegando questões de segurança (ou quaisquer outras). Mas o tempo das normas e do normal na política parece estar a chegar ao fim. O que há poucos anos nunca seria equacionado é-o hoje sem pruridos; veja-se a ambiguidade do Presidente americano em relação ao artigo de defesa mútua da NATO.

No caso de um país europeu criar uma tecnológica de alcance global ou perto disso (improvável, pensarão alguns leitores, mas continuemos o exercício), os EUA podem sempre decidir que a plataforma tem de transitar para mãos de capital americano se quiser continuar a funcionar naquele país. Trump poderá tomar uma decisão destas por não gostar dos europeus (sabemos que não gosta), por desconfiar dos europeus (sabemos que desconfia) ou simplesmente porque sim (e sabemos que Trump é assim).

Pode ainda, quer a plataforma seja europeia, chinesa ou indiana, decidir “americanizá-la” à força porque isso convém à sua corte de oligarcas da tecnologia. Depois do poder político que alcançaram, as tecnológicas americanas poderão beneficiar de um maior protecionismo econômico. Ainda agora, para continuar as negociações sobre as taxas aduaneiras, o Canadá acaba de engavetar a lei que iria cobrar mais impostos àquelas empresas. Fê-lo poucas horas antes da entrada em vigor, prevista para hoje.

O que aqui se diz sobre o novo trunfo nas mãos de Trump também é aplicável ao atual vice-presidente e potencial sucessor na presidência; e a qualquer futuro Presidente que para aí esteja inclinado. É este o poder dos precedentes: tornam muito mais fácil a vida de quem queira fazer o mesmo no futuro. Às vezes, facilitam-na a um ponto que dispensa qualquer discussão.

 

(Transcrito do PÚBLICO)



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